Uma das formas de dominação dos povos é cultural. Historicamente, guerras e invasões contavam com pelo menos quatro estruturas de dominação para submissão de um povo ao outro, o invasor: o ser, o saber, a raça e a natureza. Essa é uma estratégia de controle absoluto do povo dominado, a destruição ou a mitificação de sua cultura e de todo o seu modo de vida para que pudesse ser substituído pela cultura do dominador.
É bem pouco sutil começar um texto com uma discussão tão direta, mas nós somos o povo dominado. Isso aconteceu por volta de 1492, durante a expansão marítima e a chegada dos europeus às Américas. Aqui havia povos, havia raças, havia cidades, culturas diversas e desenvolvimento tecnológico avançado – e tudo isso foi dizimado ou substituído. O mais forte – colonizador – impôs-se sobre o mais fraco – o colonizado – e aos poucos a cultura dos povos ameríndios foi esquecida ou transformada em mito.
Por que você está falando sobre isso, Tatiana? Porque entender que a dominação cultural é uma estratégia de poder é importante para quando se reflete sobre o motivo pelo qual discriminam-se determinados tipos de manifestações culturais, sejam elas retratadas em músicas, filmes, imagens ou na literatura. Eu poderia transformar essa postagem em uma elaborada análise sobre capital cultural elitista e estratégias de poder, porém optei por seguir na proposta de falar sobre os romances de banca e indicar bibliografia aos interessados.
Falemos sobre o que chamamos de “romances de banca”. São livros que começaram a ser traduzidos no Brasil por volta da década de 40, de romance romântico, que reproduzem diversos tropos e muitos clichês, baratos (portanto acessíveis) e geralmente vendidos em bancas de jornais. As histórias são voltadas para o público feminino em geral, possuem capas que evidenciam casais em poses ousadas e eróticas e títulos no mesmo sentido. Também são discriminados e rotulados de “romance de mulherzinha” (como se isso fosse uma ofensa).
Minha mãe tinha uma biblioteca completa de romances de banca e eu lia todos. Até hoje tenho um favorito que me inspirou a escrever um romance policial que posteriormente foi transformado no livro Queda e Redenção. Sempre fui uma leitora ávida e devorava todo gênero literário que me era ofertado – inclusive, e principalmente, romances de banca.
Quando comecei a escrever, escolhi os romances românticos sem saber do estigma que esses livros carregavam. Afinal, eles estavam por todo lugar e eu não entendia, ainda, o que era o elitismo cultural e como isso servia também como parte do projeto de segregação de gênero. Minhas histórias eram fanfictions e direcionadas para públicos bem restritos. Mal havia internet e nada de rede social – a gente se encontrava pelo IRC e alguns fóruns de discussão. Tudo bem rudimentar e, com isso, prossegui no meu intuito de escrever romances porque eles me faziam bem.
Mas foi o fenômeno 50 Tons de Cinza que me fez acordar para a realidade: romances românticos, os “livros de mulherzinha”, não eram considerados literatura. O best-seller de E. L. James não é meu romance favorito e está longe de ser um top 10 na minha lista (qualquer lista), mas ele foi um divisor de águas para retirar do anonimato tanto as leitoras quanto as autoras desse gênero.
Mas Tatiana, 50 Tons não é romance de banca!
Não é mais. A proposta é a mesma: romance centrado em um casal e seus percalços para que fiquem juntos, regado a muitas cenas sensuais e gráficas, com finais felizes (apesar do caminho tortuoso que os protagonistas precisam percorrer). Equiparar os atuais “romances eróticos” com os romances de banca não é uma forma de criticá-los ou rebaixá-los, ao contrário: é uma forma de revolução.
Nossos “romancinhos” passaram a ser vendidos em livrarias. Não, eles estavam nas vitrines. Diversos livros surfaram nessa onda, tanto novos quanto mais antigos e que ficavam confinados às prateleiras dos fundos. Nós tropeçávamos em pilhas de romances românticos em todas as grandes livrarias e, depois que a Amazon chegou ao Brasil com o seu KDP, o gênero em pouco tempo dominou a plataforma.
Algumas livrarias estrangeiras fazem “piada” com as capas dos romances românticos, aludindo ao fato de que, em muitos deles, os homens estão sem camisa.
Hoje, 20 de novembro de 2021, contei 26 romances românticos entre os ebooks Kindle mais vendidos da Amazon Brasil. Ou seja, mais de 50% dos mais vendidos são do gênero. Os três primeiros do ranking pertencem ao gênero e são de autoras nacionais. Isso significa que romances são lidos, muito lidos, e vendem, vendem muito. Para se chegar ao ranking geral e lá permanecer é preciso vender centenas de ebooks e obter milhões de páginas lidas no Kindle Unlimited. Tem muita gente lendo, consumindo e produzindo romances românticos, todos no estilo dos “romances de banca” do passado.
Fiz todo esse percurso para chegar até aqui e perguntar: e por que esse gênero de romance ainda é discriminado por aí? Por que os melhores prêmios da literatura nacional ignoram a existência dos romances românticos, não nomeiam nenhum deles, não premiam nenhum?
A resposta certamente não é porque lhes falta qualidade. Em um universo de milhares de romances publicados, não é possível que nenhum seja bom o suficiente para chamar a atenção dos prêmios. A resposta reside em algo mais profundo que remete ao que falei no início do post: romances românticos são livros “para mulheres” e, obviamente, livros inferiores.
Você está dizendo que livros para mulheres são ruins?
Eu não. Mas é o que não está dito que importa, o silêncio eloquente das listas e dos nomeados. É a risadinha e o olhar enviezado quando alguém diz que escreve romances românticos. É a necessidade das autoras usarem pseudônimos porque a família e os colegas de trabalho não podem saber que elas escrevem “pornografia”. É a urgência de se esconder as capas mais explícitas porque mulher decente não lê sexo. É abdicar da capa provocativa para ter um livro mais “adequado”. É a leitora mentir para a família sobre o conteúdo do livro. É a preferência pelo ebook para evitar que descubram que se está lendo romances.
Os romances estão aí. Eles continuam nas bancas, mas tomaram as prateleiras da Amazon. Eles são livros escritos por mulheres. Eles tratam de temas muito importantes para mulheres. Eles atingem mulheres e, muitas das vezes, foram feitos para elas. Essa é a principal razão da voz patriarcal que comanda “a tal literatura” até hoje desdenhar do gênero.
Na época da Inquisição, a forma mais comum de criminalizar o feminino era transformando em problemático tudo que era decorrente da biologia feminina. Durante toda a história da humanidade, homens demonizaram a menstruação, o útero (que também já foi santificado e isso é tão problemático quanto) e as diferentes físicas comuns entre os sexos. Tudo que foi designado como papel do gênero mulher foi reduzido à insignificância. E o sexo… ah, o sexo era um grande pecado horrível que a mulher não podia cometer.
Malleus Maleficarum (O Martelo das Feiticeiras) é um dos livros mais indigestos que já publicaram sobre o tema. Ele foi escrito por dois inquisidores e fala de como a Inquisição identificava e lidava com as “bruxas”. É chamado de “a Bíblia dos inquisidores” e, apesar de gráfico, é uma leitura importante.
As mulheres foram controladas por seus corpos e pela sexualidade. Nós ainda somos controladas. Parte do preconceito com o romance romântico está no fato de que eles tratam de relacionamentos que são bons para as mulheres (deveriam, pelo menos!) e de sexo que coloca a mulher em evidência. Não é uma narrativa sexual para os homens, não foi escrita para o prazer deles nem por eles.
O sucesso dos romances é uma forma de subversão. Mulheres ousando escrever sobre sexo na perspectiva delas. Mulheres ousando ler sobre sexo. Pior, mulheres lendo sobre sexo em público, na sala de espera do consultório médico, como se sexo não fosse tabu.
Por essa ousadia, pagamos com o não reconhecimento da nossa arte como literatura. Isso que escrevemos é “livrinho” “romancinho”, “não tem conteúdo”, “não agrega conteúdo”. Já ouvi dizer que ler romances emburrece (assim como ouvir funk ou sertanejo, assim como gostar de Marília Mendonça ou qualquer MC, assim como preferir o popular ao erudito). A dominação cultural patriarcal, que é machista e elitista (por homens e para homens, mas apenas homens brancos e ricos), não permite que a literatura popular, principalmente se for voltada para o público feminino, atinja o reconhecimento que merece.
Sou uma orgulhosa autora de romances românticos. Escrevo para mulheres (mas homens podem ler, viu? Aliás, eles costumam adorar!). Coloco casais na capa. Tenho homens sem camisa, também. Adoro cenas sensuais e com pegada. Estou em um privilegiado meio de convivência que acha isso o máximo, que me apoia e se apraz do meu sucesso. Mas minha experiência positiva não me permite fechar os olhos para o que vejo ao meu entorno e para a experiência das minhas leitoras: há julgamento tanto de quem lê quanto de quem escreve.