Esses dias estava lendo um romance de época com uma daquelas deliciosas cenas sensuais em lugares proibidos. O casal teve um tórrido momento de paixão dentro do camarote do teatro. Se formos analisar objetivamente a cena, ela seria muito improvável de acontecer, mas os romances de época são recheadas de situações em que o casal se ama nos mais inusitados lugares e nós suspiramos com cada uma.
Foi nesse momento que pensei: romances também desafiam a suspensão de descrença. E pensei de novo: será que todo mundo sabe o que é isso? Foi quando decidi escrever esse post.
A suspensão de descrença é uma expressão cunhada em 1817 pelo poeta inglês Simon Taylor Coleridge e refere-se ao pacto voluntário que leitores e leitoras fazem para aceitar como verdadeiros e possíveis eventos que provavelmente jamais poderiam acontecer em nome do entretenimento. É aceitar que elfos, vampiros e fadas possam existir em nome do entretenimento, ou não permitir que essa impossibilidade atrapalhe a experiência da leitura.
É um pacto voluntário e muitas das vezes inconsciente. Leitores e leitoras já mergulham em uma obra de fantasia dispostos(as) a admitirem uma série de “absurdos” como possíveis porque, caso contrário, a história seria impossível de ser escrita. Nos livros de fantasia, distopia e terror, nos animes, mangás e games, vemos com muita frequência a supressão de descrença “em ação”. Afinal, para aproveitarmos a leitura de Crepúsculo temos que admitir que vampiros de 100 anos estejam cursando o colegial pela octogésima vez e brilhem sob a luz do sol. Também precisamos admitir que existam demônios soltos pelo mundo e nefilins escolhidos para caçá-los, ou sequer abriríamos os livros de Cassandra Clare.
Há conceitos que eliminam o “voluntário” da suspensão de descrença, colocando-a como um pacto quase obrigatório, como vemos a seguir:
suspensão de descrença é entendida como o abandono da capacidade crítica diante do apelo imersivo de um universo ficcional.
Ou seja: você abandona completamente a sua capacidade de criticar o absurdo para imergir na ficção, ou sua experiência será prejudicada. Não se trata de uma perda da capacidade crítica para além da obra que se está lendo, não se trata em acreditar no que diz o autor ou a autora do livro como se a verdade viesse daquelas palavras. Ao contrário, por mais que se saiba que aquela situação é, ou provavelmente será, impossível de se realizar, leitoras e leitores mergulham em um sonho para aproveitarem a narrativa ficcional em seu máximo.
Sou mais propensa a acreditar que a suspensão é voluntária, pois decorre de um pacto bilateral. Autores e autoras apresentam o mundo ficcional e leitoras e leitores concordam em “se deixar levar” pela narrativa. Quando a suspensão de descrença não acontece, fica quase impossível aproveitar aquela leitura porque tudo parecerá um absurdo completo.
Mas e nos romances? Romances românticos são histórias de pessoas reais, em situações reais, vivendo conflitos reais. Então não há espaço para a suspensão de descrença e os livros precisam retratar fielmente a verdade, certo?
Não.
Se os romances românticos retratassem somente a verdade nua e crua, a maioria deles não seria escrita. Suspender a descrença vai além de admitir a existência de mundos paralelos ou criaturas míticas: representa a aceitação da própria liberdade poética de criação de autores e autoras.
Toda a série Outlander se baseia em… viagem no tempo. Ela existe? Que eu saiba, não. Mas aceitamos a proposta porque ela faz sentido dentro do universo construído por Diana Gabaldon.
Mas Tatiana, Outlander não é um romance romântico!
Ainda assim, situações reais nem sempre podem ser integralmente reproduzidas nos livros mais simples, porque senão não haveria o romance esperado pelas leitoras. Imaginem se nós, autoras de romances de época, fôssemos retratar as pessoas exatamente como eram nos séculos passados? Elas seriam muito diferentes fisicamente, assim como suas personalidades seriam outras. Mulheres “à frente de seu tempo” existiram, mas a maioria foi massacrada, silenciada ou assassinada. As rupturas sociais e culturais existiram, mas aconteceram à custa de sangue e suor. E muita dor.
Há várias situações nos romances românticos que desafiam o bom senso e a realidade, mas que sem encaixam na história, divertem e funcionam bem com o pacto da suspensão de descrença. Como o livro Cretino Abusado, da Vi Keeland, em que uma mulher sozinha, dirigindo para o outro lado do país, decide dar carona a um completo desconhecido apenas porque sim. Claro que deu tudo certo, fomos presenteadas com uma história deliciosa e não usei esse argumento como crítica – mas em que mundo real isso aconteceria?
Por mais realistas que os romances românticos possam ser, por mais que eles tentem reproduzir pessoas humanas, relacionamentos humanos e situações o mais próximo da realidade, autoras precisam de liberdade poética para criar. Sem essa liberdade, a imaginação fica encaixotada e não vai produzir as belas histórias que nos fazem sonhar.
Ah, então quer dizer que todos os absurdos das histórias estão validados por essa tal suspensão de descrença? A resposta é não, de novo.
A suspensão de descrença se relaciona com os elementos da história que está sendo contada. Algumas situações surreais são necessárias para que a narrativa se desenvolva, portanto, toleradas dentro do seu contexto. Outras são apenas absurdas, jogadas de qualquer jeito para “encher linguiça”, criar drama desnecessário ou invocar um “deus ex machina” para resolver todos os problemas de forma milagrosa.
Nem todo absurdo se encaixa no pacto da suspensão de descrença. Com disse o Nerd Pai em seu blog,
Precisamos ter em mente que o limite da suspensão de descrença é o ridículo.
Digam para mim, vocês sabiam sobre a suspensão de descrença? Já tinham ouvido falar? Vamos conversar.
Fontes desse texto: